Sabedoria ancestral
Conhecendo-se um pouco as diversas culturas indígenas, identificamos nelas profunda capacidade de observação da natureza com suas forças e da vida com suas vicissitude. A sabedoria deles se teceu através da sintonia fina com o universo e da escuta atenta da linguagem da Terra. Sabem melhor do que nós, casar céu com a terra, integrar vida e morte, compatibilizar trabalho e diversão, confraternizar ser humano com a natureza. Nesse sentido eles são altamente civilizados embora sua tecnologia seja finíssima mas não contemporânea.
Intuitivamente, atinaram com a vocação fundamental de nossa efêmera passagem por esse mundo que é captar a majestade do universo, saborear a beleza da Terra e tirar do anonimato aquele Ser que faz ser todos os seres, chamando-o por mil nomes Palop, Tupã, Ñmandu e outros. Tudo existe para brilhar. E o ser humano existe para dançar e festejar esse brilho.
Essa sabedoria precisa ser resgatada por nossa cultura secularista e desrespeitosa das várias formas de vida. Sem ela dificilmente pômos limites ao poder que poderá destruir o nosso ridente Planeta vivo
Atitude de veneração e de respeito
Para os povos indígenas, bem como para alguns contemporâneos, como o recém falecido James Lovelock, o formulador da teoria da Terra como Gaia, tudo é vivo e tudo vem carregado de mensagens que importa decifrar. A árvore não é apenas uma árvore. Ela se comunica por seus odores. Possui braços que são seus ramos, tem mil línguas que são suas folhas, une o Céu com a Terra por suas raízes e pela copa. Eles conseguem, naturalmente, captar o fio que liga e re-liga todas as coisas entre si e com a Divindade. Quando dançam e tomam as beberagens rituais fazem uma experiência de encontro como Divino e com o mundo dos anciãos e dos sábios que estão vivos no outro lado da vida. Para eles, o invisível é parte do visível. Essa lição importa aprender deles.
A liberdade, a essência da vida indígena
Nos dias atuais a falta de liberdade nos atormenta. A complexidade da vida, a sofisticação das relações sociais geram sentimento de prisão e de angústia. Os povos indígenas nos dão o testemunho de uma incomensurável liberdade. Baste-nos o depoimento dos grandes indigenistas, os irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas: “O índio é totalmente livre, sem precisar de dar satisfação de seus atos a quem quer que seja… Se uma pessoa der um grito no centro de São Paulo, uma rádio-patrulha poderá levá-lo preso. Se um índio der um tremendo berro no meio da aldeia, ninguém olhará para ele, nem irá perguntar por que ele gritou. O índio é um homem livre”. Essa liberdade é tão apresentada pela extraordinária liderança Krenak e por seus escritos, Ailton Krenak.
A autoridade, o poder como serviço e despojamento
A liberdade vivida pelos indígenas confere uma marca singular à autoridade de seus caciques. Estes nunca têm poder de mando sobre os demais. Sua função é de animação e de articulação das coisas comuns, sempre respeitando o dom supremo da liberdade individual. Especialmente, entre os Guarani se vive esse alto sentido da autoridade, cujo atributo essencial é a generosidade. O cacique deve dar tudo o que lhe pedem e não deve guardar nada para si. Em algumas tabas se pode reconhecer o chefe na pessoa de quem traz ornamentos mais pobres, pois, o resto foi tudo doado. Nós ocidentais definimos o poder sob sua forma autoritária: “a capacidade de conseguir com que o outro faça aquilo que eu quero”. Em razão desta concepção, as sociedades são dilaceradas permanentemente por conflitos de autoridade.
Imaginemos o seguinte cenário: caso o cristianismo, se tivesse encarnado na cultura social guarani e não naquela greco-romana, teríamos então padres pobres, bispos miseráveis e o papa um verdadeiro mendigo. Mas sua marca registrada seria a generosidade e o serviço humilde a todos. Então, sim, poderiam ser testemunhas d’Aquele que disse: “estou entre vós como quem serve”. Os indígenas teriam captado essa mensagem como co-natural à sua cultura e, quem sabe, livremente aderido à fé cristã.
Como se depreende, em tantas coisas, reafirmo, os indígenas podem ser nossos mestres e nossos doutores, como se dizia dos pobres na Igreja dos primórdios.
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