Variedades

Quando o cinema encontra a cidade

De 23 de julho a 2 de agosto o projeto de extensão “Cidade Reencontrada: tempos e espaços para o cinema em Laguna” participou com um Cinema Itinerante da Operação Rondon Grande Oeste da UDESC. O objetivo foi promover o reencontro do cinema brasileiro com as cidades de Maravilha, Riqueza, Saltinho, Palmitos, Iraceminha, Sul Brasil, Flor do Sertão e Romelândia. Quando saímos na madrugada do dia 23 de julho rumo ao grande oeste eu e mais 6 alunos, não sabíamos o que nos esperava. Os cenários que planejamos eram mágicos e luminosos… mas nem de perto construímos com nossa imaginação os momentos que vivemos nestes 10 dias de viagem por oito cidades, 10 sessões, e 501 pares de olhos brilhantes. Nós que estamos acostumados a frequentar salas de cineclubes esvaziadas para assistir à filmes brasileiros na capital, sonhamos em lotar salas efêmeras na fronteira sul. A cada cidade os rituais de montagem do espaço se repetiam, porém renovando-se. A cada dia buscávamos um lugar diferente, menos parecido com uma sala de projeção, para que a transformação se tornasse mais surpreendente para o público. Éramos como um cinema circense: cancha de bocha vira cinema em poucas horas. Ofereciam-nos auditórios; nós pedíamos salões paroquiais. De preferência com paredes azuis desbotadas, para imitar o efeito que as gelatinas coloridas davam às projeções de cinema no início do século XX. Tela, um equipamento dispensável quando se tem paredes com rachaduras, descascadas, com passado, com história. Enquanto metade da equipe erguia o espaço, outra metade saía para divulgar o filme pela cidade. Os pontos fortes da divulgação eram as bodegas onde os velhos jogavam cartas. Aquelas mesinhas com círculos especialmente recortados para encaixar os copos e as garrafas de cerveja formavam toda uma arquitetura do carteado. Passando pelas cidades, conversando com os moradores que encontrávamos pelas ruas durante a procura do espaço e com nosso público, descobrimos vestígios da relação daquelas localidades com o cinema. De todas as que visitamos, apenas duas cidades já contaram com uma sala de cinema em sua história. Um dos que descobrimos foi o Cine Apolo, de Palmitos, onde recentemente, no mesmo lugar, foi erguido o Edifício Apolo – com 10 andares, o maior da cidade. Outra sala foi encontrada na cidade de Maravilha, que na esquina da Avenida Araucária com a Rua Nindolfo Mattje apresentava o casarão de madeira do Cine Geremia. Uma quadra abaixo do terreno que hoje abriga um bar, encontramos a residência do antigo proprietário, Cleto Geremia. Ele conta que juntou dinheiro por seis anos como caminhoneiro para em 1967 abrir o cinema. Na sala cabiam 400 pessoas acomodadas em cadeiras de madeira. “Depois da TV as pessoas querem sofá”, comentou Cleto na breve conversa que tivemos em frente à sua casa. A sala funcionou por 18 anos, e os filmes exibidos com maior sucesso de público foram os de Amácio Mazzaropi – também nosso campeão de bilheteria no Cinema Itinerante. Assistindo aos filmes do Mazzaropi entende-se a chamada “magia do cinema”. Como pode, passados 40 anos, Mazzaropi ainda lotar salas, fazer brilhar uma família de olhos e brotar anacrônicas gargalhadas? O Carlitos brasileiro, o cineasta das platéias, traz através de seus contos do Vale do Paraíba o universal da vida interiorana no Brasil. Traz a contradição e as desigualdades da formação social brasileira através de suas comédias ingênuas e melancólicas. Jéca Tatú, de 1959, é uma obra que faz o público passar das risadas soluçantes às lágrimas de uma cena à outra. A sequência em que canta “Fogo no Rancho” sobre seu carro de boi é de uma beleza profunda: “Nem saudade no peito,eu daqui vou levar. Botei o meu boi no carro e não tive nada pra carregar”. Hoje em dia, esta população precisa deslocar-se para Chapecó ou São Miguel do Oeste para frequentar um cinema. E não é mais para ver os filmes do Mazzaropi ou dos Trapalhões. No máximo uma comédia global. “Cinema, só em Chapecó. Mas a gente não vai porque tem televisão”, disse-nos uma senhora em Ilha Redonda, Palmitos. A forma de contato deste povo com o cinema acontecia, até os anos 1980, quando a televisão se popularizou no interior do estado, através dos cinemas ambulantes. Na comunidade de Cambucica, interior de Riqueza, nos contaram que o ambulante passou uma ou duas vezes nos anos 1970, com o filme Menino da Porteira, de Teixeirinha. Mazzaropi, Teixeirinha e os Trabalhões eram os reis dos ambulantes. E os melhores lugares para assistir os filmes eram as copas das árvores. Outras comunidades nunca haviam tido uma experiência parecida, como nos declararam em Linha Marafon, interior do município de Saltinho: “Isso para nós é uma novidade”. Novidade ou rememoração, foi uma experiência incrível! E nem precisou de tapete vermelho. No meio da sessão realizada em Flor do Sertão, toca um celular. O senhor atende e diz: “Agora não posso falar, estou no cinema”. De uma forma mambembe e cigana sentimos que nossa missão havia sido cumprida. Hoje estamos distantes daquele público, mas esperamos que por algum tempo, no meio da lida com os animais ou na plantação, parem por alguns segundos seu trabalho, olhem para o horizonte, e lembrem de algum trecho do filme que assistiram neste inverno. Não tenho palavras para escrever sobre a sensação de conviver por 10 dias com a espontaneidade, a simplicidade e a alegria do povo do grande oeste. Mesmo sabendo que dificilmente lerão este escrito, preciso agradecer novamente. Entretanto, devo agradecer muito, mas muito mesmo – e acredito que ainda não fiz isso da forma merecida – aos alunos que me acompanharam por estes dias. Realizei um sonho ao lado de vocês: Camilas, Vanessa, Fabiano, Rubens e Thiago.

*Professora Renata Rogowski Pozzo – Coordenadora do Projeto “Cidade Reencontrada: tempos e espaços para o cinema em Laguna”, da UDESC.

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